O Cinema Físico de Maya Deren
de Marcelo Rezende
Sobretudo, Maya Deren não faz parte do passado. Desde sua morte em 1961, aos 44 anos, seus curtos e estranhos filmes têm se comportado como um campo capaz de atrair quase qualquer proposta e posição. Maya é a avó do cinema independente norte-americana, a velha senhora da produção experimental. Deren é o elo misterioso que mergulha a vanguarda européia dos anos 1920 na atmosfera de Hollywood, ao seu olhar, sinistra; nela está uma das chaves para a obra do diretor David Lynch, fazendo do sonho a usina para a criação de imagens que são comentários de uma radical experiência com o real. Maya Deren pode, ainda, estar na origem da videoarte que reivindica, agora, um lugar para o pensamento e a história do cinema. Essas são as mais conhecidas posições de Maya, e nelas há muita verdade, mas também uma limitação. Aqui, Maya Deren está no lugar de um ancestral, um ponto de origem contido pelo tempo. Aqui, para ela, não há futuro.
O “cinema físico” é uma dessas expressões raras criadas pela crítica cinematográfica. Em alguns casos, se refere a uma força na ação dos personagens na tela, e não nas palavras ditas por eles; em outros, indica uma ausência de psicologia para em seu lugar ser filmado os gestos que, por fim, são mais reveladores da psicologia de cada um. A questão central para o “cinema físico” é que cada movimento do corpo deve dar a toda situação e gesto filmado uma dimensão que é mágica, única e eterna. O cinema de Maya Deren é um cinema assim, obsessivo em sua busca pelo corpo, pela inteligência do corpo, pelo desejo do corpo. Mas o corpo, no mundo, deve enfrentar o limite de suas possibilidades. Ele não pode o impossível. Isso é permitido em apenas um lugar. No sonho. Nesse “cinema físico” de Maya Deren, o sonho, a projeção mental, a fenda no real (e a paranóia, a psicose, o distúrbio emocional, o pesadelo) são o cenário para que o corpo possa se realizar, realizar algo e se expressar, mais do que expressar qualquer coisa. Suas histórias são contadas assim, pela erupção de um dedo, um punho, um joelho ou um salto sobre a areia. A ação física cria uma pista por onde as imagens deslizam em direção uma questão: de que modo é possível filmar a dança do corpo, e no corpo?
Se o sonho e a história de seus filmes (quando neles se exibe uma narrativa) estão em função de uma dimensão física para as imagens, a dança é o elemento que as define, dá a elas caráter, personalidade, força. Para Maya, a coreografia é a base para que construa seu “cinema físico”, que se serve da dança tanto quanto se coloca, diante dela, um desafio, o de conseguir filmá-la a partir de toda sua independência. Em Maya Deren, a dança é um objetivo, seus curtas parecem a tentativa de se criar condições para que a dança possa acontecer e existir em um filme, para o cinema. Seus curtas-metragens são de fato oníricos, políticos e sexualmente carregados, repletos de simbologias, mas eles são a forma para o conteúdo do corpo e da dança.
Em sua conturbada biografia (nascida na Ucrânia, família judia, imigrantes nos Estados Unidos), há seu período trabalhando com a coreógrafa Katherine Dunham. Essa experiência serve a Maya de travessia, porque com Dunham encontra as ferramentas para seu cinema: o corpo, com seus gestos, conta uma história emocional, social e política, a dança atravessa a experiência do sagrado, do mágico, e o projeto moderno para a arte passa pela articulação desses campos. Katherine Dunham usou a coreografia. Maya Deren se propôs a fazer uso do cinema. Um cinema muito distante das produções hollywoodianas nas quais a dança, mesmo nos musicais, sofria, como sofre ainda hoje, da tirania da canção, da história contada ou do corpo da estrela, viciada em seus próprios maneirismos. Maya parte para liberar a dança, e a liberdade será com filmes.
“Ritual in Transfigured Time”, realizado entre 1945-46, é um exemplo acabado do sistema Deren em pleno funcionamento. O filme nao é sonoro. Maya (a protagonista em parte de seus filmes) aparece em uma porta, que com o ambiente escuro cria o efeito de contra-luz. Menos de um minuto de projeção e a agitação começa. Uma outra personagem se move lentamente, e seus gestos anunciam que, um sonho, a cena apenas parece real, mas acontece em um outro tempo e espaço. A seqüência lembra um prólogo, até que uma outra porta seja aberta para uma festa. Depois, a coreografia toma o filme, as seqüências se repetem, voltam ao lugar do início até o instante em que o corpo dos personagens e o sonho se libertam e podem acontecer livremente, sem qualquer amarra. A estratégia da dança em Maya Deren, do mesmo que em seus filmes, serve para também liberá-la do passado, fazendo de sua “obra física” um lugar de permanente e ativa reconciliação entre o corpo do homem e o corpo do cinema.
Texto escrito para a mostra O Cinema de Maya Deren na CAIXA Cultural Rio de Janeiro e CAIXA Cultural São Paulo, curadoria de Silvia Hayashi e Laura Faerman.