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ENTREVISTA

Brígida Baltar

por Paulo Mendel

colaboração Mariana Abasolo

ilustração Paulo Mendel

Ao reler uma entrevista realizada em 2006 com artista plástica Brígida Baltar, fiquei surpreso com a conexão do que conversamos na ocasião com o tema da exposição homing \ roaming, quatro anos depois. Neste material inédito, passamos por assuntos como liberdade de meios, conjecturamos sobre produção low-tech com a chegada do HD e abordamos os estímulos mais frequentes na trajetória da artista, dentres estes, a casa.  

 

Foi necessário apenas a criação de uma pergunta para que o resgate deste conteúdo não ignorasse sua produção mais recente. Assim foi. Na véspera de sua viagem para Londres, Brígida me respondeu sobre suas experiências pelo Norte e Nordeste do Brasil, incluindo uma breve imersão na Floresta Amazônica.

 

  

Paulo Mendel – As coletas de umidade – neblina, orvalho e maresia – foram desenvolvidas em meios diversos. Você explorou desenhos, fotos, vídeos, filmes para desdobrar o tema durante 10 anos, talvez por todos estes fatores eu o considere seu trabalho mais conhecido. Como foi este processo?

Brígida Baltar – A primeira vez que eu fiz a ação de coletar umidade foi em 1994, em um sítio na parte mais rural de Saquarema que eu costumava ir. Levantei bem cedo para colher o orvalho das plantas junto com meu filho Tiago. Foi uma ação planejada, deixamos arrumado de véspera a cesta cheia de vidrinhos. Esta era a extensão de um trabalho que eu já realizava na casa que eu morava, de coletar e armazenar em vidros, as goteiras da casa, poeira, tijolos, cascas de tinta das paredes. Meu trabalho essencialmente lida com processo de seleção, armazenagem, organização. Eu tenho mais de uma obra em que vidros contém algo que foi recolhido, e que de alguma forma está conectado com a minha existência. Há a estante com as goteiras da casa, outra com pó de tijolo, a roupa que construí para coletar neblina possui vários bolsos que contém vidrinhos. Nesta época ainda coloquei dentro de vidros, grandes, desenhos rasgados, muitos, e estou fazendo agora um grande vidro com quase toda a informação e fotos, slides, etc. de alguma produção dos anos 80. Acho que esta maneira de agir, talvez de organizar a mim mesma, organizando o mundo, me levou a este projeto que você diz que é a minha obra mais conhecida. Isto por que eu decidi potencializar estas ações, subir as Serras de Petrópolis mais de uma vez em busca das paisagens com névoas mais especiais. As imagens que eu ia obtendo eram incríveis e então eu pensei também em que roupa poderia estar usando e que tipo de filme ou técnica eu optaria para captar aquela atmosfera. Então, foi assim que o projeto foi avançando no tempo e mudando também naturalmente com isso.

  Screen Shot 2016-08-04 at 9.16.16 PM

 

 PM – Você também fez um vinil com uma composição criada especialmente para esta série. Quando a música entrou no projeto?

BB – Eu só apresentei o projeto de forma mais completa em 2001 no Agora/Capacete, e neste momento a música entrou. Eu tentava nas primeiras edições colocar alguns sons, mas eu sempre achei delicado este limite – quando a música não tem um espaço conceitual próprio e se torna apenas ilustrativa ou adquire a forma “trilha”. Isso eu não queria. Foi quando surgiu a idéia de fazer o vinil. Seria uma forma independente de apresentação do video e este assim, manteria também o silêncio que as imagens solicitavam. Em 2001, eu tive a oportunidade de viajar por algumas cidades da Suíça e Alemanha – os lugares que eu visitava, as casas, todo mundo tinha uma vitrola – diferente daqui onde todo muito ia se desfazendo dos seus equipamentos. A vitrola, o vinil para mim foram grandes reencontros, uma contra-mão tecnológica que passou a me interessar, mais intimista, com ruídos próprios. A música foi feita em parceria com o Phil Canedo e conversas com o Dudu Candelot – foi uma reciclagem digital do som recolhido das ações de coletar.

 

coletas_01

 PM – E a passagem dos vídeos digitais para filmes 16mm?

BB – Eu usei na maioria uma câmera de video digital muito simples que na realidade não tem muita definição mesmo. O que acontece é que hoje os monitores de tela plana, tem muito mais qualidade do que a própria captura oferece. Mesmo eu usando 16 mm, tenho melhora na profundidade e cor mas fica decepcionante quando a imagem é gravada em dvd que ainda é uma mídia super limitada.

 

Eu sofri muitíssimo, ficava fazendo mil testes, queria entender tudo, interferir em todas as etapas e gravar eu mesma os dvds. Eu consultei muitos profissionais, técnicos de produtoras de video e fiz o melhor que consegui mas a própria delicadeza da névoa se perde um pouco em um mar de ruídos de imagem. O branco traz sempre uma textura em video. E depois você consegue um resultado melhor mas o projetor deve ser bom o suficiente também. E aí eu queria entender sobre projetores, baixa luminância, alta luminância. As câmeras de video com qualidade de captura como as hds estão chegando agora no mercado. As produções atuais vão ter uma apresentação diferente das de cinco anos atrás. Por isso continuo preferindo para meus trabalhos projeções pequenas e os antigos monitores de tubo. Mas nisso tudo tem uma discussão por trás que é até onde a definição de imagem importa tanto? Trabalhos de video feitos com cameras digitais fotográficas- isto é- com simplíssima definição- muitas vezes superam pela potência do resultado da obra, conceito mesmo, das escolhas das imagens e narrativas.

  

Screen Shot 2016-08-04 at 9.16.42 PMPM – O processo com Maria Farinha / Ghost Crab foi um tanto diferente, pelo menos no que diz respeito à produção. É uma obra que surge entre as séries Coletas e Casa de Abelha. Foi também a primeira vez que trabalhou com uma equipe um pouco maior, aplicou trilha original e não utilizou sua própria imagem no filme. Sobretudo, foi a sua primeira experiência explorando os olhos, o rosto, antes ocultos pelo mistério das atmosferas úmidas. Existe uma relação mais forte com o cinema nesse trabalho?

 BB – Com Maria Farinha eu quis experimentar um caminho bem real de produção, trabalhar em 16mm, formar uma equipe de trabalho, etc. Foi uma experiência. Acho que no caso da Maria Farinha a música faz parte da narrativa, por que a personagem apresenta aqueles fones de ouvido em formato de concha e é dali que aparece uma espécie de som que tem a ver com os delírios dela. Talvez esta seja a conexão com o cinema que você vê – é o meu trabalho mais narrativo, mais aproximado com a literatura, com o cinema contemporâneo. Por um lado seria demais dizer que o que faço é cinema, prefiro pensar que foi só um meio que utilizei para este projeto. Eu queria um trabalho diferente, já que nas fotos das coletas e no livro eu apareço bastante. Foi então que eu convidei a atriz Lorena da Silva para fazer o personagem Maria Farinha / Ghost Crab. Ela fez um trabalho impressionante, com muito vigor.

   

PM – A casa é reincidente nas suas criações. Tanto o vídeo como parte das fotos de Casa de Abelha foram realizados em sua antiga casa-atelier. Você retirou tijolos nesta mesma casa para criar outros vídeos, ações e Abrigo, um buraco na parede com a forma de seu corpo. Com os tijolos retirados, construiu torres, hortas até chegar no pó que você usa para desenhos e até mesmo, para criar mini tijolos. Me fale mais sobre o significado desse espaço, da casa nas suas obras.

 BB – É incrível, como casa é importante para mim! Na verdade eu acho que para todo mundo…Tem um filósofo, daqui a pouco eu lembro o nome, que diz que o homem é, enquanto habita, essencialmente ser habitante. É definitivamente este assunto é um foco para mim, nas obras Abrigo, Casa de Abelha e até Maria Farinha / Ghost Crab.Toda esta inspiração começou na casa em Botafogo, mas continua o processo, quando guardei galões de tijolo em pó desta casa. Este pó hoje uso para fazer meus desenhos, esculturas e instalações no espaço.

 

Screen Shot 2016-08-04 at 9.17.00 PM

   

Screen Shot 2016-08-04 at 9.17.26 PMPM – Muitas vezes você levou parte de sua casa para os espaços expositivos, mesmo que estes fossem do outro lado do mundo. Em um trabalho mais recente, e agora toda terra é barro, você viaja até uma olaria em Juazeiro do Norte (Ceará, Brasil) para construir novos tijolos com a mistura do pó dos de sua casa ao solo barrento do Cariri. Você também fez uma série a partir de uma viagem para Floresta Amazônica. O que fica deste intercâmbio?

 BB – Fica a memória das diferenças dos lugares, dos cheiros, do tempo. A viagem para a Amazônia, na verdade, foi um projeto do Jarbas Lopes, que me convidou a participar, assim como a outras pessoas. Era o projeto da Bienal de São Paulo, que trazia o tema ‘como viver juntos’. E então, vivemos juntos, esta é a melhor memória. Vivemos o tempo presente, sem expectativas da exposição [o que o Jarbas conseguiu conduzir muito bem, no sentido de estimular puramente esta vivência]. Lembro das caminhadas de manhã com a Paulinha Dager e o Léo. Lembro da barba e da serventia do canivete do Léo, do encontro com todos, Guga, Wogler, Luiz Andrade. Eu lembro do bolo de fubá que eu fazia pro pessoal. O Jarbas dizia que era o “melhor bolo duro que ele já tinha comido”. A ciência do cruzamento das redes no barco, o nosso capitão, doutor da Amazônia. Ele sabia tudo, de plantas medicinais e ajudou muito quando o Geraldo teve aquela dor de ouvido terrível. O pretinho, com a experiência do rio, das canoas, da limpeza dos peixes. Os peixes, nossa, quantos! As festas ribeirinhas. Os saterê-maué. O som da bateria em cima do barco, som tribal, um retorno a plenitude de todos os sentidos, os sons, o silêncio, as belezas, os mitos, os guaribas. Eu ficaria falando sem fim do melhor presente que recebi, de estar naquele barco para viver.

E aí vem o projeto de ir ao sertão do Brasil, para procurar algo que pudesse se traduzir em linguagem de arte. Eu fui então, atrás da seca, da paisagem que eu não conhecia. Mas encontrei um vale molhado, chuvoso, cheio de vegetação, o Cariri. E alugamos um carro, Marcelo Campos e eu pra procurar a aridez. Eu queria ver, aquilo que entristece as pessoas. E pensei nas diferenças deste lugar. Um lugar em que as pessoas rezam pela chuva e o tempo se torna deus. Na estrada, a chuva continuava sem parar e vi vários laguinhos se formando, poças, açudes. Sempre por perto, haviam as oficinais de tijolos artesanais, que conforme eram feitos que iam se depositando um ao lado do outro, para cima e para os lados, numa matemática orgânica, e formando construções bem estranhas, parecendo cidades muito antigas. Lá nas olarias aprendi a usar a ferramenta de madeira, bem simples, espécie madeira com tempo, para fazer uns tijolos novos que misturei com um pouco do pó que havia levado. Ficou este intercâmbio de terras, irregulares, secando ao sol e aí trouxe para a exposição na Caixa Cultural do Rio. O Marcelo começa o seu texto com uma citação do Robert Smithson:

 

“a cidade dá a ilusão que a terra não existe”…

 

Screen Shot 2016-08-04 at 9.17.34 PM

 

 Screen Shot 2016-08-04 at 9.17.53 PMPM – Personagens híbridos são bem nítidos na sua trajetória. Os vidros coletores de orvalho lembram bicos de pássaros ou insetos. A abelha, o caranguejo e o vídeo Quando fui Carpa e quase virei dragão são alguns exemplos disso. Como funciona a fábula no seu universo?

BB – Meus trabalhos mais iniciantes nos anos 90, eram mais diretos e realistas. Depois ele começou a ficar mais ficcional com as Coletas e Casa de Abelha. A Lisette Lagnado escreveu o texto do catálogo da Maria Farinha com o título Processo de fabulação, em 2004. As fábulas são pequenas histórias de ficção e onde geralmente tem aver com a personificação de animais, como acontece com as famosas fábulas de La Fontaine. Acho que não deixam de ser também pequenos mitos. Tem um livro incrível que a Cosack & Naif lançou em 2005 do Levis Strauss – se chama do mel as cinzas – eu adorei este livro que na realidade trata de uma grande catalogação dos mitos de criação das Americas Tropicais. Nos mitos aparecem araras, pica-paus, onças e outros animais tropicais, mel e cinzas para formar as narrativas…Surgem personagens como a moça louca por mel, que morava em uma casca de árvore… Este livro me ajudou a entender Casa de Abelha. Eu acho também que esta aproximação do universo animal-humano fica reservada as fábulas e mitologias. Tem um trecho do Mal estar na civilização de Freud que diz que quanto o maior grau de civilidade que atingimos, menos se observa os sinais de alguma relação com o mundo animal, do qual estamos inseridos por classificação.

A indústria dos perfumes e higienização vai se sofisticando e toda uma assepsia comportamental vai afastando os nossos odores naturais e amortecendo os instintos…bem, essa conversa vai longe.

 Screen Shot 2016-08-04 at 9.18.02 PM

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ENTREVISTA

Brígida Baltar

por Paulo Mendel

colaboração Mariana Abasolo

ilustração Paulo Mendel

 

 Ao reler uma entrevista realizada em 2006 com artista plástica Brígida Baltar, fiquei surpreso com a conexão do que conversamos na ocasião com o tema da exposição homing roaming, quatro anos depois. Neste material inédito, passamos por assuntos como liberdade de meios, conjecturamos sobre produção low-tech com a chegada do HD e abordamos os estímulos mais frequentes na trajetória da artista, dentres estes, a casa.  

Foi necessário apenas a criação de uma pergunta para que o resgate deste conteúdo não ignorasse sua produção mais recente. Assim foi. Na véspera de sua viagem para Londres, Brígida me respondeu sobre suas experiências pelo Norte e Nordeste do Brasil, incluindo uma breve imersão na Floresta Amazônica.

  

Paulo Mendel - As coletas de umidade - neblina, orvalho e maresia - foram desenvolvidas em meios diversos. Você explorou desenhos, fotos, vídeos, filmes para desdobrar o tema durante 10 anos, talvez por todos estes fatores eu o considere seu trabalho mais conhecido. Como foi este processo?

Brígida Baltar - A primeira vez que eu fiz a ação de coletar umidade foi em 1994, em um sítio na parte mais rural de Saquarema que eu costumava ir. Levantei bem cedo para colher o orvalho das plantas junto com meu filho Tiago. Foi uma ação planejada, deixamos arrumado de véspera a cesta cheia de vidrinhos. Esta era a extensão de um trabalho que eu já realizava na casa que eu morava, de coletar e armazenar em vidros, as goteiras da casa, poeira, tijolos, cascas de tinta das paredes. Meu trabalho essencialmente lida com processo de seleção, armazenagem, organização. Eu tenho mais de uma obra em que vidros contém algo que foi recolhido, e que de alguma forma está conectado com a minha existência. Há a estante com as goteiras da casa, outra com pó de tijolo, a roupa que construí para coletar neblina possui vários bolsos que contém vidrinhos. Nesta época ainda coloquei dentro de vidros, grandes, desenhos rasgados, muitos, e estou fazendo agora um grande vidro com quase toda a informação e fotos, slides, etc. de alguma produção dos anos 80. Acho que esta maneira de agir, talvez de organizar a mim mesma, organizando o mundo, me levou a este projeto que você diz que é a minha obra mais conhecida. Isto por que eu decidi potencializar estas ações, subir as Serras de Petrópolis mais de uma vez em busca das paisagens com névoas mais especiais. As imagens que eu ia obtendo eram incríveis e então eu pensei também em que roupa poderia estar usando e que tipo de filme ou técnica eu optaria para captar aquela atmosfera. Então, foi assim que o projeto foi avançando no tempo e mudando também naturalmente com isso.

  Screen Shot 2016-08-04 at 9.16.16 PM

 

 PM - Você também fez um vinil com uma composição criada especialmente para esta série. Quando a música entrou no projeto?

BB - Eu só apresentei o projeto de forma mais completa em 2001 no Agora/Capacete, e neste momento a música entrou. Eu tentava nas primeiras edições colocar alguns sons, mas eu sempre achei delicado este limite – quando a música não tem um espaço conceitual próprio e se torna apenas ilustrativa ou adquire a forma “trilha”. Isso eu não queria. Foi quando surgiu a idéia de fazer o vinil. Seria uma forma independente de apresentação do video e este assim, manteria também o silêncio que as imagens solicitavam. Em 2001, eu tive a oportunidade de viajar por algumas cidades da Suíça e Alemanha – os lugares que eu visitava, as casas, todo mundo tinha uma vitrola - diferente daqui onde todo muito ia se desfazendo dos seus equipamentos. A vitrola, o vinil para mim foram grandes reencontros, uma contra-mão tecnológica que passou a me interessar, mais intimista, com ruídos próprios. A música foi feita em parceria com o Phil Canedo e conversas com o Dudu Candelot – foi uma reciclagem digital do som recolhido das ações de coletar.

 

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 PM - E a passagem dos vídeos digitais para filmes 16mm?

BB - Eu usei na maioria uma câmera de video digital muito simples que na realidade não tem muita definição mesmo. O que acontece é que hoje os monitores de tela plana, tem muito mais qualidade do que a própria captura oferece. Mesmo eu usando 16 mm, tenho melhora na profundidade e cor mas fica decepcionante quando a imagem é gravada em dvd que ainda é uma mídia super limitada.

 

Eu sofri muitíssimo, ficava fazendo mil testes, queria entender tudo, interferir em todas as etapas e gravar eu mesma os dvds. Eu consultei muitos profissionais, técnicos de produtoras de video e fiz o melhor que consegui mas a própria delicadeza da névoa se perde um pouco em um mar de ruídos de imagem. O branco traz sempre uma textura em video. E depois você consegue um resultado melhor mas o projetor deve ser bom o suficiente também. E aí eu queria entender sobre projetores, baixa luminância, alta luminância. As câmeras de video com qualidade de captura como as hds estão chegando agora no mercado. As produções atuais vão ter uma apresentação diferente das de cinco anos atrás. Por isso continuo preferindo para meus trabalhos projeções pequenas e os antigos monitores de tubo. Mas nisso tudo tem uma discussão por trás que é até onde a definição de imagem importa tanto? Trabalhos de video feitos com cameras digitais fotográficas- isto é- com simplíssima definição- muitas vezes superam pela potência do resultado da obra, conceito mesmo, das escolhas das imagens e narrativas.

  Screen Shot 2016-08-04 at 9.16.42 PM

 

 

 

 

 

 

 

PM - O processo com Maria Farinha / Ghost Crab foi um tanto diferente, pelo menos no que diz respeito à produção. É uma obra que surge entre as séries Coletas e Casa de Abelha. Foi também a primeira vez que trabalhou com uma equipe um pouco maior, aplicou trilha original e não utilizou sua própria imagem no filme. Sobretudo, foi a sua primeira experiência explorando os olhos, o rosto, antes ocultos pelo mistério das atmosferas úmidas. Existe uma relação mais forte com o cinema nesse trabalho?

 BB - Com Maria Farinha eu quis experimentar um caminho bem real de produção, trabalhar em 16mm, formar uma equipe de trabalho, etc. Foi uma experiência. Acho que no caso da Maria Farinha a música faz parte da narrativa, por que a personagem apresenta aqueles fones de ouvido em formato de concha e é dali que aparece uma espécie de som que tem a ver com os delírios dela. Talvez esta seja a conexão com o cinema que você vê – é o meu trabalho mais narrativo, mais aproximado com a literatura, com o cinema contemporâneo. Por um lado seria demais dizer que o que faço é cinema, prefiro pensar que foi só um meio que utilizei para este projeto. Eu queria um trabalho diferente, já que nas fotos das coletas e no livro eu apareço bastante. Foi então que eu convidei a atriz Lorena da Silva para fazer o personagem Maria Farinha / Ghost Crab. Ela fez um trabalho impressionante, com muito vigor.

  

Screen Shot 2016-08-04 at 9.16.49 PMPM - A casa é reincidente nas suas criações. Tanto o vídeo como parte das fotos de Casa de Abelha foram realizados em sua antiga casa-atelier. Você retirou tijolos nesta mesma casa para criar outros vídeos, ações e Abrigo, um buraco na parede com a forma de seu corpo. Com os tijolos retirados, construiu torres, hortas até chegar no pó que você usa para desenhos e até mesmo, para criar mini tijolos. Me fale mais sobre o significado desse espaço, da casa nas suas obras.

 BB - É incrível, como casa é importante para mim! Na verdade eu acho que para todo mundo…Tem um filósofo, daqui a pouco eu lembro o nome, que diz que o homem é, enquanto habita, essencialmente ser habitante. É definitivamente este assunto é um foco para mim, nas obras AbrigoCasa de Abelha e até Maria Farinha / Ghost Crab.Toda esta inspiração começou na casa em Botafogo, mas continua o processo, quando guardei galões de tijolo em pó desta casa. Este pó hoje uso para fazer meus desenhos, esculturas e instalações no espaço.

 

Screen Shot 2016-08-04 at 9.17.00 PM

   

Screen Shot 2016-08-04 at 9.17.26 PMPM - Muitas vezes você levou parte de sua casa para os espaços expositivos, mesmo que estes fossem do outro lado do mundo. Em um trabalho mais recente, e agora toda terra é barro, você viaja até uma olaria em Juazeiro do Norte (Ceará, Brasil) para construir novos tijolos com a mistura do pó dos de sua casa ao solo barrento do Cariri. Você também fez uma série a partir de uma viagem para Floresta Amazônica. O que fica deste intercâmbio?

 BB - Fica a memória das diferenças dos lugares, dos cheiros, do tempo. A viagem para a Amazônia, na verdade, foi um projeto do Jarbas Lopes, que me convidou a participar, assim como a outras pessoas. Era o projeto da Bienal de São Paulo, que trazia o tema ‘como viver juntos’. E então, vivemos juntos, esta é a melhor memória. Vivemos o tempo presente, sem expectativas da exposição [o que o Jarbas conseguiu conduzir muito bem, no sentido de estimular puramente esta vivência]. Lembro das caminhadas de manhã com a Paulinha Dager e o Léo. Lembro da barba e da serventia do canivete do Léo, do encontro com todos, Guga, Wogler, Luiz Andrade. Eu lembro do bolo de fubá que eu fazia pro pessoal. O Jarbas dizia que era o “melhor bolo duro que ele já tinha comido”. A ciência do cruzamento das redes no barco, o nosso capitão, doutor da Amazônia. Ele sabia tudo, de plantas medicinais e ajudou muito quando o Geraldo teve aquela dor de ouvido terrível. O pretinho, com a experiência do rio, das canoas, da limpeza dos peixes. Os peixes, nossa, quantos! As festas ribeirinhas. Os saterê-maué. O som da bateria em cima do barco, som tribal, um retorno a plenitude de todos os sentidos, os sons, o silêncio, as belezas, os mitos, os guaribas. Eu ficaria falando sem fim do melhor presente que recebi, de estar naquele barco para viver.

E aí vem o projeto de ir ao sertão do Brasil, para procurar algo que pudesse se traduzir em linguagem de arte. Eu fui então, atrás da seca, da paisagem que eu não conhecia. Mas encontrei um vale molhado, chuvoso, cheio de vegetação, o Cariri. E alugamos um carro, Marcelo Campos e eu pra procurar a aridez. Eu queria ver, aquilo que entristece as pessoas. E pensei nas diferenças deste lugar. Um lugar em que as pessoas rezam pela chuva e o tempo se torna deus. Na estrada, a chuva continuava sem parar e vi vários laguinhos se formando, poças, açudes. Sempre por perto, haviam as oficinais de tijolos artesanais, que conforme eram feitos que iam se depositando um ao lado do outro, para cima e para os lados, numa matemática orgânica, e formando construções bem estranhas, parecendo cidades muito antigas. Lá nas olarias aprendi a usar a ferramenta de madeira, bem simples, espécie madeira com tempo, para fazer uns tijolos novos que misturei com um pouco do pó que havia levado. Ficou este intercâmbio de terras, irregulares, secando ao sol e aí trouxe para a exposição na Caixa Cultural do Rio. O Marcelo começa o seu texto com uma citação do Robert Smithson:

 

“a cidade dá a ilusão que a terra não existe"...

 

Screen Shot 2016-08-04 at 9.17.34 PM

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PM - Personagens híbridos são bem nítidos na sua trajetória. Os vidros coletores de orvalho lembram bicos de pássaros ou insetos. A abelha, o caranguejo e o vídeo Quando fui Carpa e quase virei dragão são alguns exemplos disso. Como funciona a fábula no seu universo?

BB - Meus trabalhos mais iniciantes nos anos 90, eram mais diretos e realistas. Depois ele começou a ficar mais ficcional com as Coletas e Casa de Abelha. A Lisette Lagnado escreveu o texto do catálogo da Maria Farinha com o título Processo de fabulação, em 2004. As fábulas são pequenas histórias de ficção e onde geralmente tem aver com a personificação de animais, como acontece com as famosas fábulas de La Fontaine. Acho que não deixam de ser também pequenos mitos. Tem um livro incrível que a Cosack & Naif lançou em 2005 do Levis Strauss – se chama do mel as cinzas – eu adorei este livro que na realidade trata de uma grande catalogação dos mitos de criação das Americas Tropicais. Nos mitos aparecem araras, pica-paus, onças e outros animais tropicais, mel e cinzas para formar as narrativas…Surgem personagens como a moça louca por mel, que morava em uma casca de árvore… Este livro me ajudou a entender Casa de Abelha. Eu acho também que esta aproximação do universo animal-humano fica reservada as fábulas e mitologias. Tem um trecho do Mal estar na civilização de Freud que diz que quanto o maior grau de civilidade que atingimos, menos se observa os sinais de alguma relação com o mundo animal, do qual estamos inseridos por classificação.

A indústria dos perfumes e higienização vai se sofisticando e toda uma assepsia comportamental vai afastando os nossos odores naturais e amortecendo os instintos…bem, essa conversa vai longe.

 Screen Shot 2016-08-04 at 9.18.02 PM