ENTREVISTA

Kristin Lucas

por Marisa Jahn

ilustração Paulo Mendel

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Colocando-se no centro de seus próprios projetos, Lucas aborda características do universo digital, como o efeito sobre a psicologia humana e sobre as normas de pensamento. Invertendo o imperativo moral para incutir humanidade em máquinas, Lucas mapeia conceitos tecnológicos em sua vida, evidenciando suas próprias suposições e falhas. Ao questionar a construção do sujeito pela dominação e pela resistência, o trabalho de Lucas levanta questões sobre a contingência – ou arbitrariedade máxima – da identidade e de sua capacidade de configuração.

Em 5 de outubro de 2007, a artista tornou-se uma versão mais recente de si mesma, ao efetivar a mudança legal de seu nome, de Kristin Sue Lucas para Kristin Sue Lucas, em uma sala de audiências do Tribunal Superior da Califórnia. Na petição apresentada, Kristin escreveu “Refresh” (Atualizar), como a razão para a mudança de nome. Após um debate filosófico a respeito da percepção da mudança, e de duas audiências, o juiz que deferiu o pedido afirmou: “Então você mudou o seu nome exatamente para o que era antes, com o objetivo de atualizar-se como se você fosse uma página da Internet”.

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MJ: Como era sua vida antes da audiência?

KL: Conforme a data da audiência se aproximava, as conversas que eu tinha com as pessoas foram se tornando pesadas e inquietantes. “Você será substituída? O quão invasivo é um processo do estado? Eles vão apagar tudo? Você vai lembrar alguma coisa a respeito de sua antiga vida?” Senti-me oprimida. ‘Substituída’? Que formato utilizar? Onde começar? Eu estava trabalhando com um prazo restrito, e metade dos meus pertences estava em um depósito do outro lado do país. Eu estava muito desorganizada para criar uma ‘cópia de segurança’, consegui que amigos e colegas artistas criassem pinturas minhas antes e após a audiência. Tais retratos serviriam como uma ‘cópia de segurança’ carimbada, independentemente do resultado da audiência.

MJ: Você poderia descrever o que ocorreu no tribunal?

KL: Não ocorreu muito além daquilo que foi transcrito. A tensão era palpável. Minha voz estava trêmula de medo, mas eu estava determinada; o juiz, que havia respondido com bom humor a peticionários anteriores, alterou seu tom de voz quando me convocou; ele me deixou por último. Li uma breve declaração que havia escrito em um cartão, comentários anotados nos momentos anteriores à audiência. As testemunhas presentes pareciam ter criado forte expectativa pela decisão do juiz. Seu aviso de recesso de duas semanas pegou a todos de surpresa.

Algumas testemunhas aproximaram-se após a audiência para cumprimentar-me e parabenizar-me por ter conseguido uma segunda data. Uma testemunha, presente em ambas as audiências (ela tinha documentação incompleta) sorriu, e disse: “Eu sei como você deve estar se sentindo. Não tenho sido eu mesma em mais de 50 anos”. Ela havia conseguido mudar seu nome para seu nome de solteira – duas semanas antes do plano de casar-se novamente e de adotar o sobrenome de sua noiva. Ficamos juntas na fila para adquirir cópias de nossos certificados de mudanças de nomes, cada cópia original marcada por um selo do estado em alto relevo.

MJ: Como você se sentiu com sua ‘atualização’?

KL: Senti isso instantaneamente com a decisão do juiz. Houve uma mudança imediata. O sangue circulou mais rápido pelo meu corpo, e eu tive uma sensação de distanciamento de tudo o que havia acontecido antes – foi divertido, eu adorei. Senti-me diferente. Naquele momento, imaginei meu corpo sendo redesenhado no espaço, recarregado identicamente pelo processo de atualização, algo como ser teletransportado em um episódio de Jornada nas Estrelas, com testemunhas presentes. Eu havia previsto que todo o meu campo de visão seria desligado, e novamente religado: a vida. A mesma informação, novos olhos. Não há nada como enfrentar sua própria morte para sentir-se mais vivo.

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MJ: Você usou o termo ‘versionhood1 para referir-se à noção de multiplicidade do ser – o eu como passível de repetição. A possibilidade de ‘criar versões’ complica o sentido unitário e linear do eu, e sugere uma subjetividade divisível, distribuída pelo espaço e pelo tempo. Você pode explicar o significado do conceito de ‘versionar’2 para você e para seu trabalho?

KL: Eu aplico o conceito de ‘versionamento’ – a perpétua catalogação de documentos virtuais revisados – amplamente, de modo a equiparar esse fenômeno à experiência de se tornar uma versão de mim mesma. O ‘versionamento’ alivia as pressões associadas à realização, deslocando o foco para o processo. Mas também pode levar alguém a sentir-se insuficiente, inadequado ou incompleto. Somos abordados, várias vezes por dia, sobre ofertas para aprimorar ou atualizar nossos computadores, telefones, softwares e sistemas operacionais – esses lembretes podem levar a um sentimento de insuficiência. Entretanto, na minha experiência, descobri que a vida como uma ‘versão’ parece mais completa – sinto como se eu pudesse definir meus próprios limites. Conforme escreve Donna Haraway:

Raça, gênero e capital exigem uma teoria cyborg sobre todos e partes. Não há, nos cyborgs, a vontade de produzir uma teoria total, mas há uma experiência íntima de limites, de sua construção e desconstrução. Há um sistema mitológico que aguarda tornar-se uma linguagem política para definir uma maneira de enxergar a ciência e a tecnologia, e desafiar a informática da dominação – com o objetivo de agir de maneira potente.3

MJ: Sim, a analogia entre a íntima experiência de limites de um cyborg diz respeito a sua própria relação intuitiva com as estruturas que são confiadas ao poder de, como se diz, “conceder uma nova vida”. Como a premissa cyborguiana sobre aquilo que é configurável influencia outros projetos ou experiências?

KL: No festival I-Machine em Oldenburg, na Alemanha, no início deste ano, apresentei-me como uma tecnologia que pode ser vestida. Nasci biologicamente em um corpo, atualizei-me dentro do mesmo corpo através de um processo de cancelamento digital e de inserção de dados em um computador. Fiz minha apresentação da perspectiva de ser, simultaneamente, alguém com quarenta anos de idade (idade anterior à ‘atualização’), e alguém com um ano de idade (idade após à ‘atualização’).

MJ: Em outros projetos, você também assume uma abordagem muito bem-humorada em relação à investigação da maneira com que crenças espirituais e noções de subjetividade são colocadas à prova, com o advento das novas tecnologias. Você poderia falar um pouco sobre esse tema?

KL: Frequentemente, crio personagens que têm uma clara compreensão do seu lugar na matriz de tecnologia/espiritualidade, mas têm dificuldade em transmitir essa clareza para o público. Em Simulcast, os praticantes puderam ‘ver’ o espectro eletromagnético e ajustá-lo com papel laminado e com rituais, mas tiveram que recorrer a metáforas desajeitadas ao descrevê-lo para o público. No vídeo Recepção Involuntária, minha personagem tinha menos controle sobre suas habilidades, e foi tanto vítima quanto super-heroína. Enquanto ela era consumida por sua condição, ela ainda lutava para ser capaz de se comunicar (figurativa e literalmente) com a platéia.

Como boa parte da ficção científica, meu trabalho tende a assumir uma posição, e deixo a cargo do público a tentativa de compreender o que essa posição realmente é. Estou menos interessada no cenário de “fantasma na concha”, em que máquinas ganham vida, ou na promessa de inteligência artificial de que a evolução em máquinas nos levará à imortalidade. Estou muito mais interessada na espiritualidade cyborg. O que acontecerá com nossa espécie conforme a tecnologia invadir cada vez mais nossas crenças fundamentais?

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MJ: Nós discutimos que, de fato, são esses atrasos – ou bolsões intermediários – que compõem a experiência do tempo em uma era digital. Por causa do seu trabalho, descobri o trabalho de Sean Cubitt sobre a percepção atual do tempo:

O que então a era digital nos trouxe? Uma experiência peculiar é o tempo de renderização do outro lado do processo de produção, podemos chamar o mesmo fenômeno de tempo de download. Você constrói uma estrutura, um processo, que o verbo já descreve em termos herdados do trabalho de modelagem tradicional, com materiais físicos. Você seleciona superfícies e efeitos de superfície, tenta algumas opções, seleciona uma visualização, e a renderiza como um bitmap. Até mesmo carregar essa tela pode ser uma experiência demorada. Feliz com o resultado, você transfere a imagem, ou uma seqüência baseada nela, em vídeo digital. Você relaxa. Você faz uma xícara de café. Você vai até a casa do vizinho e vê o que ele está fazendo. Você verifica o progresso da renderização. Você decide que talvez seja uma boa hora para fazer alguns telefonemas, talvez para comer alguma coisa. O disco rígido ainda está zumbindo quando você retorna…4

Cubitt também sugere um imperativo moral para aproveitar o “tempo de renderização” ou “tempo de download”:

O atraso é, em si, parte integrante do tráfego da web e de protocolos de transferência de arquivo, e o tem sido desde os primeiros dias de partilha temporal. As impressionantes velocidades atingidas até por máquinas de mesa, e a impressão onipresente de que a Lei de Moore é, para todos os efeitos, uma lei da física, ao invés de uma lei econômica, leva à idéia de que existe um zero de instantaneidade em direção ao qual avançamos por aproximação… Sempre vale a pena saborear o tempo: há uma oferta limitada na vida. Renderização e download são aspectos do tempo de produção digital disponíveis para contemplação… Lentidão e seus artefatos, como o travamento e os saltos de arquivos de filmes baixados em formato QuickTime e RealPlayer, não são falhas, e sim materiais . 5

Seu trabalho Refresh baseia-se na disparidade entre a expectativa de instantaneidade – tanto em um paradigma digital quanto no caso de uma mudança de nome – e os lapsos reais que cercam o evento. O que você acha disso? Por que o trecho de Cubitt é importante para você?

KL: Muito daquilo que eu estava procurando com Refresh foi expressar um tipo de esgotamento relacionado com a compressão do tempo e do espaço que vivenciamos, mas também os sentimentos de opressão diante da abundância e do acúmulo – tanta produção, tanto excesso, tantos fragmentos. É exaustivo. Vejo Refresh como uma resposta genuína à condição do efeito da influência da tecnologia no espaço e no tempo, e no sentido opressor que isso produz.

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MJ: De que modo a mudança de nome influenciou os aspectos de sua vida cotidiana ou de sua vida em um âmbito mais amplo?

KL: Fui ao tribunal deliberadamente para fazer uma mudança capaz de alterar uma vida, uma mudança aparentemente imperceptível que poderia deixar rastros de ondas gravitacionais. Vivi muitas experiências que foram estranhas para mim.

brada_kristin_3Quando apresentei minha petição de mudança de nome, fui obrigada a publicar um anúncio no jornal local. Uma representante do jornal Tribuna de Oakland telefonou para avisar-me de um erro que eu, supostamente, havia cometido na colocação do anúncio. Expliquei que eu estava, de fato, buscando uma mudança para o mesmo nome. Ela tornou-se uma aliada nesses esforços, e aprovou o anúncio para impressão.

Após o juiz concordar com minha mudança de nome, fui para o Departamento de Veículos Motorizados para obter uma nova carteira de motorista. Quando meus documentos resultaram em mensagens de erro – foram rejeitados por seus digitalizadores –, sugeri que isso poderia ter algo a ver com minha mudança de nome. Vários funcionários e um gerente de turno inspecionaram meus documentos e meu decreto de mudança de nome algumas vezes; as pessoas me olhavam de uma maneira estranha. Eles descartaram essa possibilidade, e desculparam-se pelo tempo de espera. Pessoas que trabalham em órgãos oficiais nem sempre entendem o que estou pedindo a eles, quando lhes entrego uma cópia do meu decreto de mudança de nome. Quase sempre pedem que eu explique melhor, e eu gosto de envolver as pessoas nesse processo.

Além disso, minha mãe e eu desenvolvemos uma ligação maior por causa da minha ‘atualização’. Em um primeiro momento, hesitei em contar-lhe [sobre a mudança], porque eu achava que ela poderia ficar chateada com a notícia sobre minha vida outra vida. O que havia de errado com a vida que ela tinha me dado? Ela perguntou o que deveria me dar de presente em meu aniversário, em julho, e então lhe dei a notícia, explicando que, provavelmente, ela deveria me dar dois presentes de aniversário de agora em diante – um para a minha data de nascimento biológico, e um para a data de nascimento da minha ‘atualização’. Fiquei surpresa com a reação dela; ela ficou emocionada ao perceber que, agora, ambas somos do signo de Libra. Temos mais em comum, e isso oferece novas possibilidades para o nosso relacionamento.

Comemorei o primeiro aniversário da minha ‘atualização’ em Dallas, em uma festa de Libra, conhecendo pessoas que compartilham meu novo signo solar e sendo fotografada com elas. Este ano, comemorarei meu segundo aniversário de ‘atualização’ em Oldenburg, em uma festa que terá um imitador de Elvis e karaokê.

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                                                                                                                  Então, as coisas mudaram definitivamente.

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Primeira “foto de primeiro aniversário” (1968) e a segunda “foto de primeiro aniversário” (2008),

tirada no aniversário seguinte ao Refresh de Kristin Lucas.       [ Crédito da foto: Michelle Proksell ]

 
 
 
 

1 Referente a versões.  

2 Criar versões (em inglês: versioning).

3 Donna Haraway, “A Cyborg Manifesto: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the Late Twentieth Century,” in Simians, Cyborgs and Women: The Reinvention of Nature (New York: Routledge, 1991), pp.149-181.

 4 Sean Cubitt, “Cybertime: Ontologies of Digital Perception,” Society for Cinema Studies Chicago, March 2000.

 5 Sean Cubitt, “Cybertime: Ontologies of Digital Perception,” Society for Cinema Studies Chicago, March 2000.

 
 
 

Entrevista originalmente publicada no .dpi, uma plataforma alternativa com edições que abordam mulheres e paisagens tecnológicas.