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Um jogo pode ser compreendido a primeira vista como um programa, um aplicativo. Talvez essa confusão inicial ocorra mais por compartilharem as mesmas plataformas do que propriamente por semelhanças de interface. A diferença fundamental entre games e softwares está em sua finalidade.

O software é usado com um objetivo além dele mesmo. Abrimos um editor de texto para redigir um trabalho, um contrato ou a lista de convidados de uma festa. Já o jogo tem como propósito apenas ser jogado. Seu fim está no próprio ato de jogar. Nesse sentido, o game se aproxima da arte – principalmente os títulos em que a vitória não é tão importante. Mais do que qualquer recompensa ao finalizar um jogo, seja salvar a princesa ou o mundo, o prazer de jogar é que faz do game uma experiência tão imersiva.

 

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Screen Shot 2016-07-10 at 7.38.40 PM Video Ravingz (2002 | Cory Arcangel) é uma versão hackeada do jogo Super Mario Bros.2, na qual o jogador vence simplesmente ao inserir o cartucho. Ao alterar a programação do jogo, Cory propõe um clima festivo com uma trilha sonora chiptune e a imagem manipulada até sua total abstração. O resultado lembra Synchromy (1971 | Norman McLaren), uma animação pré videogames em que a imagem cria a trilha sonora. A imagem do cartucho é Super Mario Movie (2005 | Cory Arcangel), um filme de 15 minutos programado no jogo de Nintendo.

 

Nas relações interpessoais, o jogo sempre foi um recurso para integração e competição, frequentemente usado em dinâmicas de trabalho, no ensino de alunos, nos ensaios de atores, terapias, além de esportes e brincadeiras. É a partir do videogame, em especial contra a inteligência artificial, que o verbo “jogar” (play em inglês, que também pode se referir a brincar, tocar instrumentos, reproduzir músicas e filmes etc) começa a abrigar o sentido de uma interação muito específica que podemos desenvolver com qualquer máquina.

 

“pessoas usam software,

mas eles jogam videogames.” 

– Pippin Barr

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The Artist is present  é um jogo baseado na performance em que a artista sérvia Marina Abromovic permanece sentada enquantoScreen Shot 2016-07-10 at 7.54.37 PM o público, um a um, se senta diante dela por tempo indeterminado. Por conta disso, uma extensa fila se formou no MoMA em Nova Iorque. O público passou horas na espera pelo encontro com a artista. No jogo, toda a situação de entrada e espera na instituição de arte funciona como uma espécie de prólogo do trabalho de Abromovic, possivelmente mais longo que o momento diante da artista. O jogo se desenrola em tempo real, portanto é bom ter paciência e ficar atento aos horários em que o museu está aberto de verdade.

 

Ao jogarmos, uma série de escolhas são tomadas de acordo com as regras do jogo e estratégias que fazemos. Porém alguns games se destacam por não apresentarem suas obstruções na forma de um tutorial. O jogador passa por estágios de contemplação, dúvida, reflexão e experimentação diante de uma obra a ser descoberta. As regras só são desvendadas conforme a interação se aprofunda.

Esse processo de construção de linguagem estabelece uma espécie de heurística dos videogames. O bom jogador passa a reconhecer rapidamente os problemas (puzzlesquests etc) e que opções possui para resolvê-los (na interface, no teclado, joystick etc). Mesmo com certa liberdade de ações, sabemos como reconhecer mecanismos e estabelecer uma comunicação eficiente com o sistema.

Talvez seja por isso que a relação humano-computador em certos trabalhos de arte interativa pode ser curiosamente mais “natural” do que se de fato estivéssemos diante das obras em si, sem saber como agir e com receio de um segurança indicar uma placa até então escondida: “Favor não tocar”. Não há constrangimento em falhar dentro de um jogo. O erro muitas vezes é a único caminho para se entender a regra, e em seguida, uma solução.

 

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Minecraft é um projeto independente do sueco Markus “Notch” Pesson que já vendeu mais de 25 milhões de unidades. Sem nenhuma regra proposta, o jogador se vê com o objetivo de sobreviver. Para tal, ele deve explorar e cultivar recursos naturais e transformá-los em alimentos e objetos funcionais. Com propriedades similares ao LEGO, as criações in-game extrapolam o jogo em si, como é o caso das imagens acima, de uma impressora 3D ou da inteligência artificial com qualidades biológicas. Minecraft também foi o ponto de partida para outro game, Chain World de Jason Rohrer, um MOD idealizado para ser passado de mão em mão através de um pendrive que contém a única cópia do jogo.

 

Independente da discussão em torno dos jogos como arte, o videogame é reconhecido como um importante fenômeno cultural tanto pela qualidade de seus títulos, como pelas maneiras criativas que os jogadores/criadores se apropriam deles. Sem perder suas características de produto pop, os consoles estão sempre a frente de outros eletrônicos de uso doméstico, até mesmo das mais atuais TVs e computadores.

 Consoles com imagem 3D já podem ser carregados no bolso; o corpo ou voz do jogador controlam a interface; diversos jogos estão disponíveis para abrir em seu celular, navegador e rede social preferida, a qualquer momento, de qualquer lugar. Isso significa que, pelo menos nos últimos 30 anos, crianças e jovens podem acessar as tecnologias mais avançadas para sua época, que além de divertidas tornaram-se o estímulo ou instrumento para criação de músicos, pintores, grafiteiros, quadrinistas, cineastas, videomakers, poetas, artistas ou não.

 

“Meu nome é Max.

Eu escrevo softwares para ajudar humanos

a se comunicarem com computadores.” 

– Max Weisel

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Screen Shot 2016-07-10 at 8.30.25 PM Aos 18 anos, o engenheiro de software Max Weisel foi um dos convidados a colaborar no álbum Biophilia (2011 | Björk). Desde então, o jovem desenvolve outros projetos ligados à música, como o iboard, um instrumento feito com ipads que foi usado na turnê de Björk em 2012. Max também desenvolve seus projetos pessoais como Harpulum, Video Destroyer e Touchscreen Instrument, um trabalho ainda em processo.

 

 Os videogames em que a função da música está intrínseca ao jogo se relacionam com outros sistemas de geração de som e imagem e movimento que datam de um período próximo ao surgimento do cinema sonoro. Em 1930, o russo Evegny Sholpo registra formas na faixa sonora da película 35mm com um instrumento óptico chamado VariophoneUma vez projetado, o filme produz sons parecidos com os das músicas 8-bit dos primeiros videogames. No Reino Unido, Daphne Oram começa a desenhar peças sonoras em filmes até desenvolver Oramics, uma máquina de composição musical que lembra uma elaborada moviola.

 

Desde os primeiros videogames, a música não é tratada como mera trilha sonora. Em muitos títulos – como MoondustRezBIT.TRIPDyad – o áudio é o elemento fundamental, indissociável ao próprio jogo.    

 

Nos anos de 1960, o cinema deu indícios de um desejo pela interatividade com Smell-O-Vision, sistema que liberava cheiros de acordo com o filme, mas foi no longa metragem tcheco Kinoautomat a primeira vez que o público interagiu com a história com o uso de um controle. Este tipo de filme interativo influenciou outras produções do cinema e TV, mas sempre apresenta uma fraqueza na ruptura que o jogo é usado na narrativa. Por conta desta desconexão, vale afirmar que tais projetos são longas cutscenes em um jogo bem limitado.

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A sequência acima é da série de jogos Metal Gear Solid (Kojima Productions), que se tornou famosa ao quebrar a quarta parede de maneira inovadora. Numa das cenas, um dos vilões do jogo não ameaça o avatar, mas o próprio jogador. O jogo acessa as informações dos saves de outros títulos no cartão de memória do console e, como em um sequestro da informação, ameaça apagá-los. Outro vilão pede para que o jogador coloque o controle no chão. Utilizando do recurso do tremor do joystick, ele ainda faz com que o controle rasteje, uma demonstração de poder que ultrapassa o limite da tela.

 

 Com o videogame, projetos de filmes interativos ganham o meio ideal para se desenvolver. FIlmes e séries famosas, como Matrix e The Walking Dead, chegam aos consoles com conteúdos novos que desdobram a narrativa como um todo. Os jogos de filmes não são mais uma reprodução estéril em outra plataforma, com fases que já podiam ser previstas nas sequências de ação nos cinemas.

 Heavy Rain provavelmente é um dos exemplos mais claros da narrativa ficcional do cinema operando como videogame. Seu roteiro conta com múltiplas possibilidades e consequências, mas ao contrário de outros filmes interativos ou jogos com cutscenes, não há ruptura entre os momentos do jogo e do filme. Apesar de existir uma figura principal, precisamos jogar também com outras personagens para a evolução da trama, um recurso ficcional muito utilizado no cinema. Não existe número de vidas ou game over, qualquer movimento em falso pode significar a perda definitiva de um desses avatares. A morte do avatar é incorporada ao enredo, sem possibilidade de recuperá-lo.

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Com tantas personagens e diversidades de situações, o jogador precisa estabelecer diferentes tipos de interação com o controle para solucionar os desafios, sendo boa parte de forma intuitiva. O joystick passa a não ter mais funções específicas no acionamento de seus botões, reagindo de acordo com cada situação proposta.  

 

 

ExistenZ (1999 | David Cronenberg) é um dos primeiros filmes com temática sobre videogames que de fato absorve características do jogo no cinema. Logo de início a designer de videogames Allegra Geller (Jennifer Jason Leigh) anuncia “O mundo dos games está num ponto de inflexão. Pessoas são programadas para aceitar tão pouco, ainda que as possibilidades sejam tantas.”. Cronenberg ressalta a origem da tecnologia em nós mesmos, o videogame parece ter vida e sua conexão com o usuário se dá através de um cordão umbilical.

 

“Tecnologia somos nós. Não há separação. É a

pura expressão da determinação da criatividade

humana. (…) E se as vezes parece perigosa e

ameaçadora, é porque nós temos dentro de nós

mesmos coisas que são perigosas, auto destru-

tivas e ameaçadoras, e isso se expressou de várias

formas através da tecnologia. (…) Em princípio

nas maneiras mais óbvias – os olhos com o

binóculo, os ouvidos com o telefone – a tecnolo-

gia teve que ser um avanço dos poderes que nós

sabíamos que tínhamos. Depois ela fica mais

elaborada e mais distante de nós. Mais abstrata.

Mas tudo ainda emana de nós. Somos nós.”

– David Cronenberg

 

Muitas pessoas ainda os aprisionam o videogame como um passatempo infantil. Vale lembrar do jogo Super Columbine Massacre RPG! (2005 | Danny Ledonne), sobre o massacre na escola em Oregon, Estados Unidos. Apesar da exploração midiática em torno do massacre – com a exposição das imagens captadas pelas câmeras de segurança, diversos livros e filmes – o jogo causou protestos. O que levanta a questão do criador: “nós podemos ler Columbine, nós podemos assistir Columbine, mas nós não podemos jogar Columbine?“. Independente do incômodo com conteúdo violento em jogos, mesmo os baseados em acontecimentos reais, devemos abandonar qualquer suposição de que a interatividade com a ficção, implica em perda de consciência.

 

“Em vez de nos enganarmos,

pensando que as ficções são reais,

nós nos tornamos ficcionais.”

– Kendall Walton

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Tal qual o cinema, o videogame pode ser organizado por gêneros. Além de gêneros exclusivos dos games – simulação, estratégia, RPG – alguns coincidem com os gêneros dos filmes – como ação, terror, e até mesmo documentário. É o caso de The Cat and the Coup (2010 | Peter Brinson e Kurosh ValaNejad), um game documentário com temática política sobre o primeiro ministro iraniano Mohammed Mossadegh, ícone na luta antiimperialista. Já Every Day The Same Dream é um jogo de plataforma que mais parece um curta metragem de animação niilista criado pelo coletivo Molleindustria.

 

 Não só a tecnologia é uma extensão humana, a arte também projeta nossas idéias e sensações. Ao longo do século XX, a arte revelou um desejo por sistemas parecidos com o que veio a ser o videogame, antes mesmo que ele fosse viável tecnologicamente. Se videogames não podem ser considerados arte, ao menos surgem de um desejo artístico.

 Muitas das questões que o videogame ainda é submetido são equivalentes as que surgiram há muito tempo com o cinema. Parece que as possibilidades dos videogames são tão difíceis de calcular hoje, tão inalcançáveis, quanto deve ter sido para o público do teatro filmado no início do século XX imaginar o que estava por vir com a decupagem de planos e a montagem.

 
 
 
 

curadoria

Paulo Mendel

Gabriel Perin

 
 
 
 

São Paulo, Brasil | 2013