Tudo Dominado:

A música eletrônica globoperiférica

de Ronaldo Lemos

 
 
 
 
 

Se você nunca ouviu nenhum dos estilos musicais mencionados nesse texto, saiba que você faz parte de uma minoria. Nos últimos anos, por causa da disseminação da tecnologia digital, grande parte das músicas mais pop(ulares) do mundo passou a ser produzida eletronicamente, com equipamentos cada vez mais baratos e acessíveis. Essa música nova anima das festas portuárias de Rotterdam, aos bairros pobres de Belém, das “villas miserias” de Buenos Aires às emissões piratas das rádios de Londres, sem falar nos DJ´s canadenses (alô Paul Devro) ou americanos (alô Diplo) que surfam nessas ondas. A conclusão é simples: está tudo dominado. É o here comes everybody que se faz verbo.

Como dá para notar, a idéia de “periferia” usada aqui não tem muito a ver com um conceito geográfico, nem tem relação com uma separação entre ricos e pobres, desenvolvidos e em desenvolvimento ou mesmo norte e sul. As cenas musicais que essa pequena amostra ilustra surgem em qualquer lugar onde haja um computador, criatividade e gente com vontade de dançar. A invisibilidade dessas cenas acontece apenas quando decidimos (conscientemente ou inconscientemente) não prestar atenção nelas. Por essa razão, pensadores como Hermano Vianna vêm afirmando que o “centro” está se tornando cada vez mais “a periferia da periferia”, especialmente do ponto de vista simbólico.

Com isso, surge uma nova estética festiva mundial, de imensa popularidade e com impressionante intercâmbio criativo. Dá para perceber facilmente elementos latinos no kwaito da África do Sul, do funk carioca no kuduro angolano ou no bubblin do Suriname/Rotterdam, assim como do do Miami Bass no funk ou do hip-hop no kwaito. Em outras palavras, tudo se mistura com tudo e cada vez mais rápido (especialmente nas periferias). A “virada tecnológica” que agora se espalha pela produção musical global ocorre pela mesma razão que os negros americanos passaram a usar toca-discos em vez de instrumentos musicais na década de 70, com o surgimento do hip-hop: era mais barato e acessível do que comprar instrumentos “de verdade”.

Outro aspecto importante é que essas novas cenas reinventam a idéia de “indústria” com relação à música. Por exemplo, abandonam a dependência da idéia de direito autoral. Conforme os dados da pesquisa da qual participei por dois anos (e que envolveu Colômbia, México, Nigéria, Argentina e Brasil), quanto mais música é disseminada livremente, maior é sua sustentabilidade econômica. Por isso a pesquisa foi batizada de Open Business, ou seja, modelos “abertos”, que dependem mais do compartilhamento do que do controle e das restrições ao conteúdo. E o muito importante: são mercados multi-milionários, que geram muito dinheiro, através de arranjos econômicos sofisticados e flexíveis. Em outras palavras, há muito o que aprender com eles, também em termos de organização econômica.

Outro impacto importante é que essas cenas globoperiféricas reorganizam a idéia de “qualidade”. Enquanto o samba levou anos para ser aceito como música de boa qualidade, o funk carioca já começou a ser aceito com bem menos tempo (ao ponto de se tornar “chic”). O tecnobrega já começa a se misturar com a guitarrada em Belém, sempre considerada “boa” música. A cumbia villera na Argentina já ganhou também sua noite “chic”, em um dos principais clubes de Palermo em Buenos Aires, atraindo os mesmos hipsters que há meses execravam tudo aquilo (e que sejam bem-vindos!). Em suma, não existe mais árbitro para o gosto. Se boas ou ruins, pouco importa. O fato é que a festa é ótima e está por toda a parte. Só não participa quem não quer.

Champeta – fenômeno cultural colombiano (que inclui a música) derivado sobretudo dos descendentes negros na região de Cartagena. Apesar do termo ser usado há mais de 90 anos (quando tinha caráter depreciativo), a champeta consolidou-se como um ritmo musical nos anos 80, e nos últimos anos vem-se tornando cada vez mais eletrônica e dançante. Hoje produz hits de estádio, como a faixa “Mueve la Colita” incluída aqui.

Kuduro – Originado de angola (mas agora bastante presente também em Portugal), o kuduro significa exatamente o que sua sonoridade portuguesa indica (“cu duro” ou “bunda dura” para nós brasileiros). O termo diz respeito à forma como o ritmo é dançado. O kuduro, que remonta aos anos 80, tem influências do zouk e da soca, e mais recentemente, do funk carioca também.

Tecnobrega – Desdobramento da poderosa e antiga cena do brega paraense, o tecnobrega nasceu da fusão da música eletrônica com o brega tradicional. Antecedido na década de 90 pelo bregacalypso (também resultado de uma fusão), o gênero do tecnobrega se renova sem parar. Atualmente, há diversas vertentes: cybertecnobrega, brega melody e o novo e empolgante eletromelody (que conta com duas faixas representadas na presente seleção: Maderito & Joe e Banda Eletro Melody).


Kwaito
– Surgido nas periferias de Johanesburgo na década de 90, o kwaito é o resultado da fusão do hip hop norte-americano, samples de música africana, house music com batidas um pouco mais lentas e linhas de baixo pronunciadas. Muitas vezes cantada em dialeto, o kwaito vem-se transformando de música do gueto a trilha sonora da juventude sul-africana pós apartheid.


Cumbia Villera
– Originada das “villas miserias” de Buenos Aires (o adjetivo “villera” é depreciativo), é uma variação da cumbia colombiana (que se espalhou por praticamente toda a América Latina). De origem acústica (violão, acordeão, bateria, flautas etc), na sua vertente villera, torna-se cada vez mais eletrônica e se torna notória pelas letras pesadas sobre drogas e sexo. Nos últimos anos, vem-se tornando chic (com noites “fashion” em Buenos Aires) e até mesmo experimental.

Funk Carioca – Influenciado pelo Miami Bass, o funk carioca teve origem a partir de versões em português feitas nas favelas cariocas para sucessos do estilo. A partir daí, passou a se desenvolver como um estilo próprio, incorporando elementos afro-brasileiros (como o tamborzão, atribuído ao candomblé), ao mesmo tempo em que absorve rapidamente as últimas novidades em termos de tecnologia (como o uso hoje dos samplers e seqüenciadores MPC´s nos bailes). Apesar de ainda ser referido com o adjetivo “carioca”, está presente hoje em todo o Brasil.

Bubblin – Estilo musical eletrônico que conecta o Suriname à Holanda, de batidas eletrônicas secas e arranjos econômicos, é responsável por animar festas de Rotterdam a Paramaribo. O bubblin em geral é acompanhado pelo boeke, fenômeno de dança também cada vez mais popular.

Dubstep – Originário das periferias de Londres no começo dos anos 2000 e popularizado através de rádios-pirata e mixtapes. O dusbstep é produto da cena Garage na inglaterra. De ritmo lento, sincopado e linhas de baixo profundas e atordoantes, o dubstep é notório também por ser difícil de dançar (e nesse sentido, reinventar as possibilidades da dança).

Coupé Decalé – O coupé decalé é ao mesmo tempo um estilo de música e de dança. Originado dos imigrantes da Costa do Marfim, o ritmo nasceu na França e rapidamente migrou de volta para a Costa do Marfim, onde se tornou sucesso também. O estilo usa fortemente elementos africanos e linhas de baixo bem marcadas, tendo geralmente um tom festivo e otimista.

 
 
 
 
 
 
 
 

Texto escrito para a exposição I/Legítimo do Museu da Imagem e do Som em São Paulo, na qual Ronaldo Lemos fez a curadoria musical, com uma amostra de músicas de cada um dos estilos acima.